Contador de acesso grátis

25 fevereiro, 2010

A lua desta vez não voltou

A lua desta vez não voltou. A noite ficou vazia e eu tive medo de me afundar nas falésias onde tu te escondes e brilhas. Desta vez também não me despedi dos meus aliados nem fui lá fora ver o céu cinzento para imaginar que seria outro depois do infinito. Desta vez não quis ser só mais um corpo que se levanta para engolir o mar.
(Poderemos nós, decifrar à luz, os segredos que um coração esconde na sua intimidade? E para onde vamos nesta marcha inconstante, repleta de paradoxos existenciais e tambores que esmagam cada dia numa íntima justificação de contentamento? )
Olho para a massa que nos moveu até este poço e sinto uma angústia enorme por tudo o que não tive força de aprisionar, por tudo o que perpetuei atrás dos meus ombros, por tudo o que perdi numa repetição de figuras ilusórias que de nada me serviram e que permaneceram sempre bem no fundo do meu peito para personificarem a minha derrota, súbitas e ziguezagueantes pelas covas do meu caminho.
No entanto, sempre estive aqui diante das estrelas que desenhei no teu repouso. Sempre estive aqui na gestação dos versos que rolam pelo chão com o vento morno de Julho - aqueles versos emergentes de ardor que sempre nos impulsionaram à nossa transição de mundos para uma última fecundação nas órbitas da lua .
Sempre estive aqui com esta esperança aflita de que resistisses ao medo e ao vácuo que esta vida sopra só para nos assustar. Sempre estive aqui subindo e descendo as escadas, à tua procura, à procura da tua inundação de fulgor e de saliva. Sempre estive aqui, reunindo as palavras que o teu coração compõe, que o teu coração estremece, que o teu coração intensifica e prolonga na substância dos sonhos.
E agora, atravesso o quarto e os objectos são apenas objectos, a minha embriaguês é apenas um desencadeamento cru da minha solidão, sem qualquer moralidade nem aparência, apenas eu e a tua imagem desabitada, apenas eu e a cinza das minhas recordações.
Por isso é que desta vez não me levantei só para engolir o mar. Por isso é que desta vez não fui espreitar o céu cinzento nem me imaginei depois do infinito. Desta vez permaneci mudo diante os meus aliados e a noite vazia. Desta vez tive medo de te procurar nas falésias onde tu te escondes e brilhas. E a única certeza que trago, é a funda e visível certeza de que desta vez a lua não voltou.

As invisibilidades do Triunfo




Atravessei os impérios, atravessei as sombras e os fragmentos de toda a nossa existência. Atravessei os heróis amontoados sobre as estradas, à porta dos edifícios, defronte ao fogo, sempre inconformados com a mesma desilusão, sempre irrequietos com a mesma estranha vontade de partir, sem nunca conseguirem pronunciar uma só palavra entre a multidão e o medo, entre o eco subterrâneo que nos entrega à imprecisa consciência de luz e de abismo.
Atravessei com toda a minha convulsa febre, as memórias e as pedras indestrutíveis que todos fomos erguendo neste mundo de nuvens; neste mundo que com toda a ternura nos embala, nos persuade e nos agasalha. Afinal, acabamos todos por perdoar, acabamos todos por perceber a inutilidade da nossa raiva e da nossa covardia, acabamos todos por perceber como de algum modo tudo está envolvido numa misteriosa matéria que nos une, nos domina e, incontornavelmente, nos transforma.
A vida é guiada pelo contratempo dos obstáculos e do nosso ser excessivo de desejos e de paixão. Somos moléculas, erros, somos deuses e máscaras defronte a um espelho de contraditórios sentimentos; mas todos, todos respiramos o mesmo milagre, a mesma inspiração dos tolos que sobe aos palcos e aos planetas intactos, a mesma inspiração que faz com que o nosso silêncio expulse e expluda aplausos pelo amplo deslumbramento da alma.
Com o tempo, aprendi a viver com o riso, com o absurdo, com a compreensão e os nervos; mas sobretudo com a ironia e a cólera. Aprendi a dormir com os fracassos, as ameaças, com a terra que se esfarela no esvoaçar das sombras e no fundo grito do vazio. Por muitos motivos, aprendi a dominar os meus impulsos, aprendi a equilibrar-me sobre o chão onde a compreensão das coisas é um lugar frágil e solitário. E tudo isto, sem qualquer espécie de ordem ou de genialidade, senão um esforço mental para que esta tômbola de estrelas e de sentimentos que é o coração, nunca me fechasse a sua cratera de sonhos e de lava.
Por isso, acredito no mundo da forma como o vemos, como o exprimimos, mas também no modo como ele nos toca, nos abstraí e nos conquista. Acredito que mil cavalos atravessam os nossos sonhos todas as noites, fazendo estremecer o nosso corpo submerso de encantos e de irrefutáveis paixões; fazendo dos nossos dias extintos uma luta e uma vingança contra nós mesmos, para que depois da turbulência e da poeira que caiu aos nossos pés, uma lua ressuscite, por fim, no centro do nosso cérebro.
Acredito que depois do arrependimento, da solidão e da forma como sustentamos o nosso sangue, estaremos mais felizes nas águas do nosso sono, estaremos mais felizes e menos desencontrados sob a essência do tempo, estaremos verdadeiramente mais lúcidos entre a nitidez do olhar e os nossos impérios vivos.


Acredito que o mundo é o resto do chão onde me dissipei. .

22 fevereiro, 2010

Estilhaços

Assim te escrevo, com a chuva lá fora, com as canções destruídas ao colo, sem nunca tirar dos olhos a omnisciência do teu nome, a amplitude das tuas palavras, os vestígios que o amor nos deixa sempre que nos possui, sempre que nos arranca do solo e nos promete a imensidade de todas as coisas e de todas as subjectividades filosóficas com que sonhamos e que depois se incendeiam com toda a sua crueldade, entrelaçadas entre as recordações, a poesia e as lágrimas.
Eu bem sei que o amor é um esconderijo de espuma e de segredos; eu bem sei que o amor é a abstracção do que é concreto para resumir a totalidade do que existe e do ainda está por inventar. É uma desordem - é um rodopiar de fábulas e de vias lácteas entre as nossas mãos com todas as possibilidades e todas as respostas, com toda a ternura e todas as nuvens, com todas as consequências e todas as luas, numa só face, num só olhar sincero, fazendo-nos sentir as mãos trementes, fundidas, garantindo-nos que nunca nos abandonará sob o céu vazio e longínquo.
Mas então porque partis-te se eu mergulhei em todas as madrugadas que o teu corpo reinventava na sobriedade daquilo que é inefável e intrínseco? Porque partis-te pisando a terra húmida, deixando para trás as estrelas, deixando para trás o talismã caído, os lugares onde estivemos e que agora, lúcido e despedaçado, tento encontrar a sua fundamentação, as suas cores e cada curva dos teus movimentos ao longo desta hostilidade invencível; tentando unir cada pedaço e cada estrutura destes sentimentos que durante séculos viveram presos em mim e no meu oceano de sonhos e de espuma.
O que é o coração? O que é o seu interior crepuscular e intenso onde nos é traçado um caminho sem regresso pulsando sempre, com todo o sangue, a assombrosa carnalidade da vida? E quantos mais dias terei eu para enfrentar este abalo de enigmas e de teorias freudianas, impotentes e ao mesmo tempo vorazes na dissimulação de tudo ser real perante as minhas convicções e perante os quartos onde nos condenamos - os quartos entusiásticos onde ainda guardo todos os teus cometas e toda a nossa ardente cumplicidade que me sufoca, destruída por este nosso amor que agora é indeterminável, por este nosso amor que agora é opaco nos presídios do meu regaço vencido.
Por isso é que te escrevo, arrancando tudo do meu coração difuso, arrancando tudo do chão que ainda sobra em mim: cada palavra, cada lágrima, cada mágoa, arrancando todas as pedras que enterramos nos sonhos do infinito com toda a esperança e toda a sinceridade.
Por isso é que te escrevo, ouvindo a chuva lá fora, ouvindo a chuva lá fora arrastando-se pelos trilhos da minha coragem e da tua despedida. Por isso é que te escrevo, sem saber exactamente para onde vou, sem saber exactamente em que lugar poderei deixar a largura das tuas recordações, o poder do teu silêncio e a transparência violenta dos dias que se desfizeram entre os nossos dedos. Sem saber onde deixar a minha vida senão nas profundezas do teu coração.

20 fevereiro, 2010

A estrada vazia

O que somos senão uma combustão de sonhos recriados; fugindo por entre as limalhas ainda vivas dos restos de ontem, depois de ter-mos inventado doces palavras sobre o amor e nunca ter-mos encontrado um equilíbrio ou um paralelismo entre os nossos sentimentos e toda a nossa insustentável vida?
O que é este pêndulo, este tic-tac sem nome que nos persegue como uma sombra atroz acelerando os nossos passos sem se deixar dominar com as nossas teorias condensadas e voláteis? E para quê regressar se os nossos caminhos são indeterminados e os nossos corações fracos, e toda a nossa existência oscila entre as glórias e as derrotas, mas sobretudo, entre a loucura e a esperança de tudo renascer até desabar outra vez num caminho para o abismo e sem fim ao mesmo tempo.
Projectamos os nossos ideais, escondemos os nossos fantasmas, levitamos nos artifícios da luz e somos sempre indivisíveis, mesmo que em cada gomo de sensibilidade que nos arrancam a nossa vida perca um pouco da sua originalidade compulsiva e transcendente. Mesmo que nos levem alguns pedaços do que fomos e todo o nosso deslumbramento de lume encarcerado num só suspiro, numa só vitória, se entregue ao peso de um outro corpo - para arder.
Vivemos entre os mistérios das estradas que inventamos e o desdobramento das nossas conquistas. Vivemos de modo a que sobre o chão deixemos sempre um pouco de nós e, diante do mundo oco, a nossa alma transborde todos os desejos numa final consciência de pureza e absolutismo.
Então para quê duvidar? Então para quê fugir? Então para quê este espesso caminho que se acentua cada vez que o tentamos explicar, cada vez que se aproxima e nos absorve para dentro da sua criação cintilante e vertiginosa?
Somos impossíveis neste grito, neste rosto que estremece diante a estrada vazia. Nunca poderemos regressar, nunca poderemos esperar pelo nosso orgulho. Somos as noites escuras, a estrada que continua sempre sempre sempre diante de nós e a incompreensão da nossa angústia. Nós somos o prazer que nos evapora, somos todos os mundos unos e eléctricos num só corpo pousado sobre o universo. Nós somos os pés frios que caminham para a mais profunda libertação.

19 fevereiro, 2010

Meia dúzia de linhas que escrevi durante a noite moída


Trago apenas meia dúzia de linhas que escrevi durante a noite moída. Sou a conjuntura de todas as minhas batalhas, de todos os circos destruídos, em fogo, em cinza, rolando pela cidade anónima dos corpos que me visitam através das janelas alienadas.
Sou metade do que sou, entorpecido pelas luas rodopiando em torno do meu cérebro. Sinto-me tão só como a primeira vez que abri os olhos e sobre o meu corpo desequilibrado, duas mãos vibraram em mim para me arrancarem do covil das águas luminosas.
Sou a confirmação de que o tempo testemunha aquela poalha que não se vê, mas que deixa algumas picotadas nas carnais irregularidades da vida, sobretudo na paralisante e perpendicular descida da memória à superfície do que é real e do que toda a vida foi invenção.
Agora só me resta esperar pelos mares que espumam sobre os rochedos os pensamentos misteriosos que alguém escreveu em dias de angústia, em noites de paixão, de fúria, ainda abismado com as aparentes circunstâncias de existir e pela plena consciência de entulho e de largos afectos.
Agora só me resta esperar pelas águas cobrindo o meu sono. Sempre me assombrou esta falta de assimilação do desejo com a realidade. Nem sempre tenho forças para alumiar um espírito enfraquecido. Nem sempre tenho coragem de me aglutinar à razão dos outros. Progrido com as minhas vitórias, mas sobretudo com as cicatrizes e as mágoas que ainda hoje me cortam, como navalhas.
No fim, a moralidade de tudo ser falso e ridículo, é verdadeiramente inútil. Sei que dos meus curtos passos, longas ruelas se espalham pelos braços e pelos enigmas e os traços e os perímetros de outras longas ruelas que não vejo, mas que simultaneamente, também sobrevivem da vida no seu estado absoluto.
Sou o meu próprio argumento de existência. Não trago fórmulas nem fundamento. Trago apenas meia dúzia de linhas que escrevi durante a noite moída.

As tuas estrelas



A vida é a nascente destes sentimentos definitivos. Sou eu e a tua contorção de ancas, sou eu e o teu constrangimento, o apelo flutuante que estende a tua mão na minha, que nos entrega o imaginário quando voamos iluminados na autenticidade dos sonhos e no esférico movimento do universo.
Espero ser sempre concreto na visão ideológica do teu aconchego, mas por vezes, inversamente de tudo aquilo em que acredito, sinto raiva destas fronteiras de personalização, destes lugares estritos que nos separam em duas velocidades e dois parâmetros. Porque apenas tu bafejas os meus desejos. Porque apenas tu trazes os teatrais abalos do coração e, não obstante, trazes ainda a explosão dos eclipses, as madrugadas do corpo sobre o chão e a monotonia das coisas vagas e inseparáveis.
Quero os teus murmúrios e a tua incandescência. Quero o lugar adverso a este caminho que percorro sem ti.
Nem sei para onde me levam estes percursos feitos de fechaduras, de delírios, e sempre tão injustos com o que sinto. Porque nem tudo é fictício depois do aguaceiro e dos desabafos sobre a intensidade do que és. Interrogo-me nesta perspectiva e escrevo e escrevo e escrevo sem encontrar nenhum alivio nem qualquer indício dos teus lábios ou do teu farelo de estrelas.
Onde está o teu alojamento, a tua inundação de risos soltos, as tuas alucinações e tua perversidade? Onde estou eu neste desígnio incompleto cumprimentando a vertigem de tudo ser real? Onde habita a origem deste desassossego inválido e edificado sobre o meu corpo e as minhas certezas? Para onde vamos tão exuberantes?
Abraço o balançar das tuas recordações e sinto-me gélido perante a minha coragem. Nem sei se fui absolvido pela matéria que o amor ilustra no seu erotismo sincero, ou se apenas a magnitude dos sentimentos é uma confusão involuntária do meu raciocínio. Sinto-me perdido e esborrachado na realidade.
Porque a vida é pouco mais do que o teu olhar misterioso diante das estrelas. A vida é pouco mais do que uma fábula ou um jardim de contradições, pouco mais do que uma viagem em conformidade com o quotidiano e as pedras do que nunca existirá. A vida reside na delicadeza dos teus lábios e dos teus sonhos. E eu, quero regressar amanhã ao sossego infinito dos teus braços, lá longe, onde tombam todos os teus troféus e onde resistem as tuas mais resplandecentes estrelas.

18 fevereiro, 2010

A semente


Olhou para o fundo da sala e, com algum desapontamento, não se conseguia mover do chão para a porta. Trazia a cabeça pesada, as paredes ondulavam e Lydia mergulhava na alcatifa verde absorvida dolorosamente para o escuro, o esquecimento, o nada, sem conseguir gritar.
Ouvia vozes rápidas e ininteligíveis, sentia alguém perto que depois fugiu – quem era? Correu para apanhar o vulto desaparecendo entre as circunferências amarelas que se desfaziam como espuma na atmosfera. Estava a sonhar - sabia-o. E sem nenhum prazer, corria num fundo sombrio, depois branco, muito branco, com o seu olhar focando a perspectiva rasa dos seus próprios pés, alternados, de trás para a frente, fugindo agora do mesmo vulto que antes perseguira, ainda enjoada, com vontade de acordar antes que vomitasse na alcatifa.
Nem sabia porque estava preocupada com a alcatifa se, na verdade, estava a sonhar. Mas sentia-se bem melhor: o vulto tinha desaparecido e já não se sentia enjoada, apenas um pouco frágil e dormente.
Olhou para o pátio, havia laranjas no chão, era de tarde - talvez domingo - e Teresa estava de costas, sentada num banco e em cuecas - adivinhava-se que descascava laranjas enquanto que um cão, nítido e nervoso, amontoava as cascas num canto. Lydia foi ter com Teresa. Mas quando olhou directamente para o seu rosto, Teresa tinha as mãos cobrindo as lágrimas.
Depois Teresa retirou as mãos do rosto e via-se-lhe os olhos húmidos, o rosto pálido, olhando directamente para os olhos de Lydia, como se a quisesse acusar de alguma coisa. Ficaram assim alguns momentos. Lydia sentiu o pêlo do cão deslizar por entre as suas pernas, sentiu o focinho húmido a farejar-lhe a pele até que depois o viu, rigidamente sentado, ao lado de Teresa, ainda marcada de lágrimas olhando para Lydia com o mesmo aspecto de acusação.
- Sabes porque estou aqui, não sabes? – Perguntou Teresa, rasgando o silêncio. – Ando à procura da semente que tu e o vulto esconderam durante todo este tempo. Onde está?... Afinal sou tua mãe, porque me escondes estas coisas, filha? Estou tão triste, tão só… Quero a minha semente.
Lydia nem sabia de que semente Teresa falava. E porque dizia ela que era sua mãe? Estava transtornada agora. Sentia-se nervosa, as pernas tremiam, Teresa olhava-a e o cão ao lado, ainda rígido, como se a quisesse proteger.
A consciência de Lydia parecia torcer o rosto de Teresa. « Devo estar a sonhar», pensou. «Seja o que for, a Teresa não é minha mãe. Nem minha mãe nem coisa nenhuma. Quem é esta mulher que está aqui a acusar-me de ter escondido a semente? Que semente? Um vulto? O único vulto que de que me lembro estava neste sonho. Perseguia-o, perseguia-me. Aconteceu a momentos atrás e metia-me medo.»
- Teresa, tu não és a minha mãe.
Lydia via o rosto de Teresa a gritar-lhe. O cão ladrava agora, furioso, levantando o focinho para que Lydia lhe pudesse ver os olhos e os dentes. Embora não ouvisse nenhum ruído, como se estivesse do lado de lá, de repente o lugar à sua volta rodopiava num barulho insuportável: os gritos de Teresa, «eu sou tua mãe», a semente, o vulto, o cão a ladrar irrequieto, sobretudo a acusação e o absurdo. Pensou que estava a enlouquecer ao mesmo tempo que se sentia nos braços de alguém que não conseguia ver. Onde estava? O que me está a acontecer? Quem sou?
Um sono profundo capturou-a. Os gritos eram agora ecos que se desfaziam entre uma imagem negra, uma atmosfera muito escura e fria que a envolvia. Levitava.
Deixava de pensar, de sentir, esquecia-se de si mesma; tudo se desfragmentava enquanto a realidade se dissipava fazendo evaporar o sonho, as emoções, os sentidos; fazendo evaporar qualquer crepitação de ruído, algum vestígio de imagem, de pensamento ou de sensação, apenas um vazio sobre a escuridão, e o silêncio. O silêncio.
Quando abriu os olhos, viu uma luz branca e obliqua perfurando o espaço. Cheirava a hospital, vultos brancos moviam-se, havia barulhos de máquinas gravitando no ar. Um rosto do alto vigiou-lhe os olhos, fez-lhe algumas perguntas e, à medida que Lydia respondia a sua consciência tornava-se mais clara. As formas equilibravam-se agora com o entendimento. Tudo se tornava mais lúcido embora ainda não tivesse percebido bem o que acontecera. «Quando é que o meu pai chega?», quis perguntar. Mas o enfermeiro colocou-lhe um comprimido amargo na boca que a fez voltar a adormecer,
Mais de um dia se passou, talvez se tenham passado dois ou três, sempre com visitas de enfermeiros que a entretinham e a animavam naquele lugar clandestino do mundo. Quando estava sozinha, tentava recompor a memória exacta do que se tivera sucedido. Reconstruía peça por peça a realidade e, aos poucos, a sua consciência deixava-a no mesmo ponto onde ela tivera ficado.
Quando o pai chegou, já Lydia reconstruíra a mesma expressão acabrunhada de alguns dias atrás. O pai abriu a porta, Lydia olhou-a de alto a baixo e parecia anoitecer lá fora. As luzes delicadas e ténues das lâmpadas quase não a deixavam visualizar o pai. Apenas um esboço incompleto do pai à porta. Um esboço extático e sem rosto.
Um leve odor de comida movia-se no ar e isso deixava-a extremamente solitária naquele quarto. O pai estava parado à porta e ela sentia vontade de voltar a nascer de novo. Ouviu o bater brando da porta e olhou à sua volta. Estava no seu quarto. Ali estava o seu quarto, a sua cama, os papéis na secretária, o corpo pousado na cama, lânguido e estendido.
Olhou de novo o pai. Agora já lhe avistava o rosto. Ele deu breves e demorados passos e sentou-se na berma da cama. Olhou-o nos olhos por uma grande quantidade de tempo e em silêncio. A imagem do rosto do pai estava trémula e por vezes desfocada. O pai olhava-a, perscrutando os traços do seu rosto, enquanto Lydia sentia algumas lágrimas na face que não conseguia conter, cada vez mais soluçantes, deixando-a sem forças para dizer o quer que fosse.
O pai com a ponta dos dedos limpou-lhe as lágrimas e deslizou os dedos pelas linhas onduladas do rosto de Lydia. Ela sentia os dedos moverem-se pelos olhos, escorregando pela face, pelo queixo, e muito levemente, pela boca, desenhando os contornos dos lábios com uma ternura inexplicável.
- Está tudo bem Lydia, não te preocupes. Estamos salvos.
Quando o pai saiu, Lydia virou-se para o lado da mesinha de cabeceira e viu pousado um retrato de quando era criança. A imagem transmitia uma sensação de felicidade imensa. «Era tão feliz nesta altura», pensou.
Levantou-se da cama, abriu a porta e andou em pés descalços ao longo do corredor. Alguns enfermeiros andavam mudos de um lado para o outro e havia pessoas estranhas que não conhecia de lado nenhum que deambulavam pelo corredor e que depois se perdiam por uma sala ampla, quase vazia, que tinha uma televisão acesa e sem som.
Lydia foi-se sentar perto de uma senhora velha que olhava para a janela num canto mais escuro da sala. Olhou-a por uns instantes e depois disse:
- Quero ir-me embora. Por acaso sabe-me dizer como faço?
A velha começou-se a rir as gargalhadas e Lydia teve vontade de lhe dar uma bofetada. Mas depois a velha calou-se e cobriu o rosto com uma pose séria, como se lhe fosse dar um conselho
- Lydia, Lydia, para onde é que tu queres ir? Esta é a nossa casa há muito tempo. Somos loucas, ou pelo menos, é assim que somos tratadas – mulheres que ao longo da vida enlouqueceram. Eu sei que às vezes é difícil permanecer aqui tanto tempo, tomando comprimidos que por vezes não nos deixam melhores.
- Mas porque motivo estou aqui? Eu não estou louca… O que aconteceu para acharem que enlouqueci? Apenas quero voltar para casa e contar tudo à minha mãe.
- Há quantos anos já estás aqui? Há quantos anos ninguém te vem visitar? Olha bem para ti, estás quase tão velha quanto eu. Para onde queres ir agora? Deixa-te estar aqui que estás melhor. Estamos presas neste hospital, mas pelo menos morreremos sossegadas.
Depois de uma pausa, finalizou
- Bem, agora se me permites, vou descansar.
Lydia olhou pela janela, podia ver os candeeiros iluminando o jardim lá em baixo. Avistava ao fundo pequenas luzes de casas distantes e quase sentia a brisa que estava lá fora enrolando-se no seu pescoço. Olhou para as suas mãos que estavam brancas e enrugadas. A alcatifa era verde, os enfermeiros faziam o seu serviço. A televisão era a mesma onde via as telenovelas e as paredes essas, com os mesmos quadros, a mesma melancolia. A atmosfera era a do costume e tudo, tudo lhe era agora mais familiar.
Dois enfermeiros colocaram-se do seu lado, como se a quisessem ajudar a andar, e levaram-na para o quarto. Deitaram-na, deram-lhe mais um comprimido azedo e despediram-se.
Lydia voltou a pegar no retrato, olhou o seu rosto infantil com um sorriso iluminado e sentiu que aquela imagem pertencia a um lugar longínquo, um lugar inalcançável. Virou o retrato e nas suas costas leu:
«Lydia, como o prometido, aqui está uma fotografia da tua infância. Penso que terá sido tirada no teu sétimo aniversário, estavas linda. Um beijo da tua mãe, Teresa».

14 fevereiro, 2010

O elemento

O Elemento inicia-se numa molécula insubmissa ao raciocínio. É fundamentado pelo chão que desliza debaixo dos seus pés, reconfortando-o com algumas certezas de existência. A fantasmagórica e colorida visão dos objectos, para além de o fazer sentir vivo, faz com que todas as outras coisas existam. O Elemento é um ser pertencente ao Universo; não só ímpar e geneticamente moldado - como também tem uma identidade surpreendente, movida pela atmosfera circundante. É precisamente nessa esfera que o Elemento se divide entre o raciocínio, as emoções e os sonhos. E já bem na obscuridade misteriosa da sua existência, depois de uma linha muito ténue, quase invisível, o Elemento ainda é dividido por um instinto animal - armadilha das suas circunstâncias.
O Elemento é a sua busca e tudo o que no exterior conquista. Desfragmenta-se num ideal secreto, expulsando uma energia persuasiva, uma corrente de fantasias e objectivos em fuga de si mesmo, recortando a sua personalidade ao mesmo tempo que se deixa invadir pela realidade expansiva. Não é mais então do que uma matéria de contrastes, sem deter o que sente, sem deter o que lhe vai perfurando os olhos, sem deter que tudo faça explodir dentro de si mesmo, um núcleo invisível, responsável pelas suas escolhas e o Eu, um lugar que o faz pensar, que o faz absorver o mundo. Um lugar que se gera pela impulsividade, um lugar entre a alma e o corpo, um lugar de amor, de criatividade e de escolhas, de missão e de luta. Um lugar inconscientemente transformado pela percussão da vida e da essência.
O Elemento é isto: uma energia inquieta, com convicções concretas numa realidade abstracta. O Elemento é um ser solitário entre a multidão.

Assim, aqui estamos, entre esta confusão de existencialismo individual. Rasgando caminhos sob a luz da lua que nos faz interrogar a própria vida; elementos do universo esvoaçando e transformando o mundo.
Assim, acordamos nesta velha realidade, conscientes do cosmos, fortalecidos pelas nossas convicções e ideais, sempre dotados de razão e de liberdade.
Estamos cada vez mais evoluídos. Afinal, estamos tão próximos do que queríamos ser que a humanidade desespera e baralha-se na sua heróica reconstrução. Ou seja, vivemos esta evolução ao máximo dos nossos sentidos, cada vez mais próximos do super-homem, como dizia Nitcheze, mas ainda do lado de cá, porque a corda que separa o homem do super-homem, é imaginária. E, deste modo, tão poeticamente certos como errados, vamos remexendo a existência e os nossos valores, entregues sempre ao aspecto inicial, atravessando uma corda imaginária que pode desaparecer ao acordarmos, sobre o abismo.
Nós somos seres complexos na leveza existencial. Nós somos o peso da nossa vida. E ainda bem , porque é aqui que começa a consciência que nos faz levitar.

Fantasmas

Quantas vezes perguntas pelo amor, enquanto o mundo adormece os seus ruídos e a obscuridade toma conta das coisas, inunda as árvores, depois as casas, até se mover sobre a superfície dos objectos e o alargado ambiente dos quartos onde te sentas e te questionas. Vem a noite, fecundando o mistério da vida por entre as paredes, escorrendo das mãos, serpenteando o teu chão no ziguezaguear das imagens empurradas no torpor do tempo, atravessando as réstias do dia e tu cada vez mais perto desse não sei o quê que és tu e o teu modo comovido de olhar para o mundo e sentir a vida.
Nesses dias, sabes que ninguém tem bem a certeza do que é, senão um sonho estranho reduzido a mil partículas de sentimentos e de matéria. E o amor, por esses lugares desencontrados de fúria e de evasão, de fendas humanas e sublimes munições de factos e corações com asas que falam, versos simples que matam, não é mais do que as tuas nãos que se perdem pelos arvoredos e as histórias do mar que rasgam longos caminhos pelo teu corpo e outros segredos que escorregam pela ansiedade da tua ternura e a sobriedade dos teus feitiços.
Assim, na infinita ternura dos teus gestos, descobres a verdade do teu véu, onde ficas envolvida em laços de esperança, onde te consomes de ébrias danças encantadas de paixões reprimidas, de luas momentâneas e fábulas absolutas em torno de momentos inseparáveis que vão espreitando e experimentando a brisa da tua loucura e da tua fé, como se o planeta nos teus pés absorvesse toda a tua energia, e toda a tua incontida consciência de vida e de orgasmo se dissolvesse, impunemente, em ti.
Mas quando chegas a casa e adormeces o teu vestido, já rendida à sombra e ao fulgor da escuridão que te assalta o chão pelas frinchas e as janelas mudas, colocas a tua febre de amor ao lado das estrelas que recolheste das noites inquietas. E só depois de já lavados os olhos e a interioridade do espírito, vigias o universo sobre o parapeito da tua varanda, desarmada e destemida, como se tudo fosse real e acreditasses, por fim, que à tona do teu rosto, sem palavras na inconstante fogosidade do coração, este emaranhado de emoções te pudesse, de algum modo, levar num magnetismo de absorção para lá de ti e da aparência das coisas, desde a amplitude do mundo até à particularidade dos fantasmas, conduzindo sem tréguas, a tua realidade a um final diferente.

As fadas

Abris-te as asas e voas-te, como os pássaros no seu cio inconformado, no seu segredo que te sussurrava assim: «se ficares, tu terás uma porta para ser e outra para ser outra, na terra inóspita e hipócrita, tu terás a vontade prometida e na fera da tua laia a recompensa da mágoa ou da liberdade. Abre as asas e voa pelo destino da tua melancólica ventura, santa das trevas num espírito queimado.»
O piano anunciava as fadas à superfície do mar, e tu foste atrás dos ventos recolhendo os orgasmos entretidos a recompor a mundo. Que filosofia essa, a dos ventres estonteados pelos caminhos confusos que a história escarafunchou nas cicatrizes do teu retrato...
Só mais adiante, já estarias fundida nas margens das paredes do teu crânio, louca e desonrada pelas tuas emoções, se ouviu de muito longe a sirene do sangue. Quem eram? Os cavalos, as florestas, o chão e os tambores. «Cala os ânimos, sua ingrata. Começou a tua febre.»
Mas não. Eram apenas os teus sentidos flamejando contra ti enquanto na janela te olhavam, sem intuição nem arestas. Vazios.
Mas depressa te apanharam as fadas e os dedos que falam. Pelos caminhos da tua vagina, foi por elas – essas fadas invisíveis – foi por elas que perdes-te o respeito, a verdade mentira absoluta da coragem da humanidade. Entre os romances que se assemelham à tua respiração e às tuas lágrimas ateadas pelo chão, as tuas asas voavam por páginas que engoliste nos movimentos da tua fecundação. O que seria?
As fadas que para ti sempre foram verdadeiras Zaratrustas das tuas cavernas sem cópula; as fadas que viviam à beira mar, são agora a tua pose inquieta à procura de uma estrela para adormeceres sem chorarem os teus olhos. São o teu amor que não respondeu. São as tuas mãos descuidadas, o teu sangue que ferve nas tuas estátuas e na consciência dos quartos mudos. E, só à noite, sob a angústia da lua, despes o teu manto de covardia - e danças.
Que desta vez as fadas não te acordem. Que não te batam à porta para falares em vencer ou confessares os teus pecados e as tuas sombras. Queres estar sozinha na realidade de um sonho teu. Um sonho com um piano que vem, devagarinho, sobre as feridas do teu corpo, do mesmo modo como tu sonhas a única verdade do mundo.

05 fevereiro, 2010





No tempo em que eu era peixe, uma mulher visitava-me em segredo. Ás vezes morta, às vezes viva; mas sempre com o mesmo sabor na pele, alastrando-se pelas águas.

04 fevereiro, 2010

A menina dos devaneios com sabor a canela

A menina dos devaneios com sabor a canela gostava de se pentear antes de cair na cama. Fingia que a insustentável relação dos sonhos com a vida era uma circunstância da qual só os poetas podiam usufruir, mas era mentira. Caída na cama, ainda trazia as mãos riscadas de amor e, com alguma intensidade, fechava-as na esperança que o número sete lhe trouxesse sorte, ao mesmo tempo que sussurrava poemas de Shakespeare.
Tinha mudado de quarto e ainda lhe custou um pouco a adormecer. Ás vezes, durante o dia, conversava com um amigo imaginário que lhe falava sobre as estrelas no alto, girando e gravitando, como se quisessem ser apanhadas. Isto fazia-a rir. Agora também se ria, lembrando-se destes instantes e mordendo a almofada para não acordar ninguém.
Quando o despertador tocou, já era tarde. Tinha um exame da faculdade para fazer e ainda sentia as pestanas pesadas, o corpo extasiado de sonhos. Se pudesse, estaria defronte para o oceano sem pensar em mais nada. Mas nessa mesma ocasião, levantou-se de sobressalto e só deu por si quando já estava a almoçar num restaurante italiano, com um ruído de uma orquestra que combinava com as luminosidades entrando pela janela, flutuantes e melodiosas.
Voltou para casa dentro de um autocarro empanturrado de gente. Já nem se lembrava que tinha feito o exame nem o dia em que estava. Sentia-se um pouco abafada devido ao barulho e ao obtuso preenchimento do autocarro anulando o oxigénio. A menina dos devaneios com sabor a canela não era menina de grandes angústias, pelo contrário: era mágica, enfeitiçava tudo com o desenho do seu sorriso, aquele sorriso onde as palavras brilham, onde os seus lábios estremecem a paisagem e vão levantando devagarinho algumas partículas de contentamento das gastas cores do solo, arrastando com o seu corpo solto os melhores dias do mundo.
Mas naquele momento sentia-se estranha. Não lhe apetecia voltar para casa. Queria rir-se. «Onde andará o meu amigo imaginário?», pensou.
Saiu algumas paragens antes de casa e decidiu ir ao cinema. Isolou-se a deslumbrar uma comédia romântica que a deixou a pensar sobre o amor, mas sobretudo sobre as relações com falta de diálogo e as consecutivas traições. E, como no final, tudo se organizou, mesmo quando tudo parecia dar errado, reflectia. Reflectia a caminho de casa, concentrada, sem se lembrar que caminhava a pé, atravessando o bosque florido, mas cinzento anunciando a chuva e a noite que se estendia sobre as árvores.
Quando olhou para a sua frente avistou, vertical e corpóreo, o seu amigo imaginário. Como podia ser real? Esperou que ele falasse, na dúvida. Ele não disse nada, apenas a olhava, profundamente e fazendo soltar a sua essência habitual, mas desta vez, num espaço concreto, num espaço real, com uma cor profusa e intermitente. Era ele sim, não restavam dúvidas. De súbito, numa voz ligeiramente grave, ouviu: «menina dos devaneios com sabor a canela», e sem se conter, sorriu.
Depressa seguiu o amigo imaginário. Ele mostrou-lhe onde vivia: uma casa com formas de árvore. Era, de facto, absolutamente incrível, para a menina dos devaneios com sabor a canela, a arquitectura daquele lugar.
Sentou-se no mesmo lugar onde ele costumava conversar com ela, e sentiu dentro de si um repouso interior fora do vulgar; sentia-se sonhar, ao contrário de quando falavam por aqueles métodos inexplicáveis. Pela primeira vez, levou a sua mão ao rosto do amigo imaginário; pela primeira vez sentiu o toque, o mistério da ordem física, a fusão da carne descendo todas as vias lácteas até àquele lugar. Sentia na sua mão, o sangue do amigo imaginário a correr rápido, mas inteiro e puro. Pairava um silêncio, o olhar dele sobre o seu. Não sabia o que dizer, nem o que pensar. Levou a sua boca até aos lábios dele e beijou-o dissolvendo todos os seus sonhos e toda a sua febre. Pensou, de repente, que estava num conto de fadas e que ele poderia desaparecer - mas não. Depois olhou bem fundo dos olhos do amigo imaginário, como se lhe procurasse a alma. Sentiu o sabor da canela na língua e saiu.
A caminho de casa, já quase a noite se tivera debruçado sobre o bosque, movia-se em passos velozes fazendo estalar as folhas caídas. Algumas gotas de chuva caíram entrelaçando-se no seu cabelo e o mundo parecia-lhe estranhamente largo e absoluto. E assim, enquanto cantarolava, «One love, one life, it´s one need in the night. One love, we get to share it. Leaves you, darling, if you don´t care for it...», anoiteceu.
Antes de ir dormir, a menina dos devaneios com sabor a canela, penteou-se como era frequente e foi à janela. Podia ver as estrelas no alto, girando e gravitando. Mas desta vez não a faziam dar gargalhadas; deixavam-na antes com uma sensação de prazer, uma sensação de magia que deslizava através do seu corpo, uma luz branca que se desfazia nos feitiços do seu sorriso…

03 fevereiro, 2010

Eu

Tenho mil vidas provocadas de consequências, pensamentos, nervosismo e melancolia. Sou a variedade do que sonhei, as minhas alucinações e todos os estímulos que o mundo desenvolveu em mim. Sou a complexidade do meu equilíbrio e alguns fenómenos semelhantes.
Tudo o que eu trago é a minha apatia, o meu amor pela vida em si, e sempre que posso, as minhas demonstrações de afecto. Sei que tenho fortalezas psíquicas, mas também sinto falta de alguém. Também trago dentro de mim um asilo.
Gosto de brincadeiras mas sobretudo de vínculos. Quero ser vencido quando trouxer as condições satisfatórias para tal. Quem controla o que penso? E o que sinto? Sinto o cérebro povoado de intensos poderes que me manipulam. Evito entrar em conflito comigo, embora tenha as minhas convicções. Procuro criar à minha volta um ambiente isento de dúvidas. Mas sou verdadeiro, e por isso frágil e instável. Espero ter sempre a força necessária para permanecer paralisado e vencer.
Não quero a monotonia. Sou feito de curiosidades e necessidades. Tenho bom carácter, mas sou perigoso. Entusiasmam-me e excitam-me as contrapartidas do que é banal. Faço promessas como faço ameaças.
Eu merecia um castigo, embora eu sinta que trago um paralelismo com o universo em certas circunstâncias.
Tenho acção sobre o ódio e o amor. Sou concreto no meu imparcial comportamento. Manipulo e domino. Mas ofereço liberdade e livre arbítrio.
Tenho tensão e medo. Tenho manobras e ilusão. Sou um exemplo de vítima de opressão, embora também seja um exemplo de moralidade. Não sou agressivo mas nem sempre reprimo os meus instintos. Tenho laços, compromissos e uma origem. Sou estranho. Sou feliz e manifesto a minha alegria ao mundo. Mas também sou isolado e imobilizado por esse mesmo mundo. Sou vulgar.
Quero emancipação e não discrepância. São estas as minhas justificações. Também reivindico - no meu direito – e quero ser proclamado por quem me apoia.
Sou um abismo entre o facto e a retórica. Sou quase uma metáfora. Assim me projecto, um pouco dissimulado. Mas é esta a minha consciência individual. Sou um reino de fábulas e crenças. Sou íntegro na realidade. E nada, nada mais do que eu, tem a minha culpa e a minha vitória. A minha vida transparente. Eu.

24 janeiro, 2010

A Brincadeira

Enroscava os fios de esparguete nos cinco firmes e afiados tentáculos do garfo que na sua mão branca possuía, e por vezes, desfazia o frango para o mastigar enquanto Paul, a olhava entre a luminosidade das velas e a percorria com a sua enorme aptidão para contemplar; ornamentando toda a linha do seu olhar palavras pueris e os seus gestos fastidiosos. Era bom homem, mas M. não se sentia minimamente atraída por aqueles regalos. Sentia-se francamente apenas a sua amante e o seu consolo. Aproveitava, isso sim, o sabor condimentado do jantar, o vinho tinto, e a luz das velas que, por mais que estivessem inquietas e aumentando e diminuindo o seu núcleo quente, a deixavam serena no seu manjar irrepreensível.
Depois de uma grande trago de vinho, M. olhou para a janela e avistou as costuras da lua pendurada e o relevo das árvores sombrias e das casas inundadas de noite e de angústia. Ainda trazia o toque de Paul no seu corpo, a gravidade do seu superficial e espesso ser no chão, os gemidos e os movimentos furtivos tomados pela saliva e a ansiedade; sim, o amparo e o chamejar de todas as coisas inflamadas, exíguas e absolutas em cada pequeníssimo segundo. As pernas ainda estremeciam.
Depois disse: «Paul, preciso de voltar,adeus».
Ao abrir a porta de casa, M. com a sua candura e ainda transpirada por todo aquele fôlego e sapateado emocional, surgiu-lhe na mente a sua banheira repleta de espuma, e sentiu-se bem-aventurada. Depois pensou nos seus planos e estratégias e o modo como estavam assertivos e pouco pungentes. Sentiu a chave rolar duas vezes e acendeu a luz enquanto descalçava os sapatos. Ao lançar o olhar para o fundo do corredor, quase como uma vertigem, ali estava, extático, repousado e sólido e com toda a sua frivolidade, Simon.
«Penso que sabes o que faço aqui».
«Mas…», vacilou M., «o documento não era para ser entregue apenas na próxima semana?»
«Não te faças de parva, quero o documento agora!»
M. sabia que tinha de entregar o documento prometido a este estranho homem. Mas com o silêncio prolongado de Simon, viu-se com mais tempo para jogar o seu jogo, com as suas tácticas e as suas ordens, embora admitisse estar a navegar na vida luxuosa que lhe era oferecida, mesmo ganhando terreno perante Paul e perante o castigo a que ela mesma se condenou.
«É aqui que tu vives, nesta mansão. Tens as condições necessárias para seres uma mulher abastada de dinheiro e até para te tornares importante e útil na sociedade. Que queres mais? Tens todo este império adiantado, mas o prazo da entrega do documento acabou. Quero o documento agora. Já!»
Foi nesse mesmo instante que M. sentiu necessidade de se afastar de todo aquele escárnio. Queria desistir, ir viver para a rua e livrar-se daquela procriação de mentiras e absurdos. Afinal nem ela percebia para que servia aquele documento. No entanto, já era tarde, muito tarde, e desatou numa convulsão de lágrimas diante o rosto desfigurado de Simon.
«Só preciso de mais 48 horas, por favor.»
Sentaram-se os dois à mesa como dois demónios. As lágrimas ainda escorriam pelo rosto de M., no entanto o seu choro tivera enfraquecido. Apenas um tilintar quase inaudível preenchia a sala, pingando no silêncio que se tinha posto, comprimido e frio, petrificando aos poucos M., diante a expressão férrea de Simon.
O coração que estava ausente começara a sentir-se, acelerado, bombeando o sangue de M. com força, magoava-lhe quase, fugia-lhe mesmo, e M. começou a argumentar com uma certa infantilidade o caso. Falava rápido e desconcentrada, devido aos nervos, ao mesmo tempo que Simon arrastava a cadeira e andava de um lado para o outro. A sua voz tornava-se agora irritante, perturbando-a a si mesma, preenchendo todos os buracos do silêncio pormenorizadamente.
Quando acordou daquele solto carrossel de frases atropeladas e inúteis, já tinha levado uma bofetada no rosto frio e desligado. Ficou sem qualquer tipo de reacção. Apenas inexpressiva e zonza.
Passados momentos o telemóvel toca.
«Paul, diz… eu estou bem... não estou nervosa, dói-me a cabeça. A tua mulher? Está a dormir, pois. Não vais dormir? Claro que tenho ciúmes, mas eu sei que precisas de dormir…».
Quando Paul lhe conta que está aglutinado ao jogo de Simon, M. fica em primeiro lugar, confusa; em segundo lugar surpresa e desiludida, depois enfarpelada de tantos sentimentos desiguais e humilhantes, vê-se suja e irremediavelmente só, com o seu âmago desolado, a cólera que se lhe vai trepando pela consciência entupida, o seu corpo derrotado, ali, olhando para onde mora o sorriso vazio de Simon.
A realidade estava difusa e sem analogias. Apenas o bloco de pedra quase sem sentidos que se tivera tornado, de súbito.
Nesse mesmo instante, Simon apontou o revólver à cabeça imóvel de M., e com precisão e alguma carnalidade, disparou. O corpo de M. tombou e estremeceu uma última vez no chão.

23 janeiro, 2010

A Saliva

Eu sei que finges que sou um teatro quando no teu tacto eu sou consolo e preguiça ao amanhecer. Mas certamente, ainda com mais coragem, a tua prosperidade; de modo a que avances para o fundo da cama vestindo as cuecas, amarrotada ainda pelo esoterismo dedicado às sombras ondulantes no tecto durante a noite.
Com os teus escrúpulos e as tuas manias, pisamos as ruas, cúmplices do comportamento do riso do coração. Esperamos que desta vez o nosso raciocínio esteja certo, e uma transfusão de afectos, por fim, possa ser parte do nosso estado psíquico.
Chove e eu não compreendo nada do fracasso destes homens: confusos com a sua própria satisfação. Tomas dois sedativos e um martini e sussurras-me a tua confidência. «És um antídoto das minhas mágoas», e no compasso e no torpor da tua estratégia, abraças-me dizendo que me amas sem fim.
Por espontaneidade ou por impulso, despedaço a tua saliva por entre os dedos, e contemplo-a isolada e suspensa na atmosfera. Sinto os meus sapatos, foco o olhar, a água escorrendo dos meus dedos, tu abraçada a mim como uma louca, até levantarmos a cabeça e girando à nossa volta, de novo, a realidade e as ruas.
O amor tem as suas arquitecturas e as suas manhas. Dizes que é mais fácil rodopiar pelo mundo, do que acordar sem ninguém. A fraqueza é um mal para sermos fortes. E assim, segregas todas as minhas emoções com discórdia e sensibilidade, mesmo assumindo o meu disfarce.
No entanto, o paradoxo da solidão e do amor provoca-te náuseas. Só quando chegas a casa é que sossegas, é sempre assim.
O quarto sonâmbulo e as tuas vitórias espalhadas pelo chão, dão-te forças para lavares a cara. Sinto de novo a tua saliva nos meus dedos, mas desta vez não olho, não quero olhar, e tu sorris, ainda com o rosto molhado e os olhos preenchidos de remorsos e esquizofrenia.
Nesse mesmo instante, viras o teu corpo. Sentes um chicote na alma, pedes desculpa entre dentes e arrastas-te até à cama, tombando o teu sorriso frágil.
Foi assim que a tua lucidez morreu.

Lisa

Ela cresceu entre as paredes daquela casa sem grande culpa de ter nascido sem mãe e sem pai. Apenas a avó a adormecia nas noites de Inverno, nas noites inquietas quando as sombras se ampliam pelo quarto e os ruídos se transformam em passos e sonhos.
Aos poucos, pela incerteza de tudo existir e depois da metamorfose do corpo lhe ter surpreendido com tanta exaltação, a sua vida tornava-se num estranho destino a que se habituara a viver. Era curioso como Lisa tinha crescido e se tinham delineado formas no seu retrato; como os seus sentimentos eram outros perante a vida e a sua misteriosa sina. Por outro lado, a avó que tivera sido mãe e pai, era uma mulher solitária que ficava envelhecendo à janela, a observar quem passava na rua, cada vez mais frágil e demente, cada vez mais sozinha e inútil, filha da uma neta que um dia criou na sua estrada de tristes canções e fins imprevisíveis.
Assim, a vida de Lisa se foi tornando num cárcere entre as paredes daquela casa de onde não podia fugir. Mas era a avó que protegeria no fim da solidão e de dias amargos sem paixões e sem grandes desejos. Apenas sorria aos vizinhos, com a avó doente na janela a perscrutar tudo, ela desamparada a caminho de um emprego invisível, sem grandes perguntas nem respostas, apenas o seu olhar azul numa luminosidade tímida, apenas o regresso a casa, o bater do portão e a avó, a febril avó entre as paredes silenciosas daquela casa cheirando a velas e a remédios.
Mas um dia quando chegou a casa, depois dos seus afazeres, encontrou a sua avó morta. No entanto, era como se as duas já o esperassem. Na noite anterior já as janelas estavam fechadas. A avó de Lisa pediu que ela se sentasse com ela. Desligaram a televisão e a avó começou a relatar a sua vida e a crónica de Lisa antes de a avó a ter abraçado. Contou-lhe que a sua mãe tivera fugido com um advogado para a América quando Íris ainda tinha dois anos, e o pai, «o teu pai filho destas rugas que podes tocar», morreu de saudade, como acontece aos cães.
Por isso, foi claro de entender de que se tratava de uma despedida. Uma despedida que incluía a avó mas também a casa e o seu passado. Porque depois de todos terem desaparecido e morrido perante a sorte e azar de um destino, Lisa fechou o portão para se livrar do cheiro a velas e a remédios, dos sentimentos amarrados aos velhos retratos, mas sobretudo, para se livrar dos fantasmas e das canções tristes que se foram entranhando nas paredes, como musgo.
Foi nesse mesmo instante que Lisa, pela primeira vez, sentiu com prazer a estranha sina da sua vida.

No meu jardim

Ouço o som dos teus passos no meu jardim. É a tua insónia que fala, reproduzindo a tua forma de habitar o meu pensamento.
Mas de qualquer modo, eu também não estaria aqui a cismar porque é que estas coisas acontecem, se tu não viesses, de mansinho, murmurar ao meu ouvido a locomotiva que te tomba do lado de lá onde eu nem sequer gesticulo um pronuncio deste mundo, girando agora, debaixo dos teus pés descalços. Assim é, e assim também nós inventamos brisas que deslizam sobre a superfície do que é matemático. Um estalar de folhas secas, os teus lábios feitos de pólvora, e ainda os restos, os restos dos ruídos das máquinas gerando dentro de ti, o vento que entra pelo friso das janelas do meu quarto, até à locomotiva se dissipar.
Dizes que é mais fácil não haver noite, como se de manhã eu já tivesse esquecido tudo. Vens e trazes na mão bocados de cinza que não são nem da tua esperança nem da tua luta. Apenas cinza. Cinzenta, fina e frágil. Podias dizer que eram lágrimas que eu acreditaria, mas não – simplesmente dizes que é cinza - e lanças tudo ao ar, transformando o meu jardim nos sonhos que deixei morrer.
Quando adormecer sobre a confusão do teu corpo, sei que devagarinho me irás perseguir, escondendo-te debaixo dos meus medos, dos meus risos, trepando pelos meus sonhos, e riscando um outro caminho à minha frente, que não o meu, propositadamente para que eu não me abandone.
Assim, vagarosamente, abro os olhos. Há bocados de imagens sucessivas da tua recordação contra a parede. Ligo a luz e dói-me a cabeça. Já é de manha e pouco dormi. És um fantasma que escavou o meu cérebro até aparecerem ruelas que nunca tive e te levam até onde eu estou.
Mas sabes, às vezes não acredito em nada do que tu fazes e falas, parece que não dormes - como eu- que inventas a tua existência para eu ficar a olhar-te, eléctrico, a ouvir a tua locomotiva, que aparece e desaparece com o som dos teus passos pelo meu oblíquo jardim.
Por isso, agito o copo com água e refaço o meu ser corpóreo. Vou até à varanda para ver se ainda te alcanço. Engulo todos os teus sintomas num só trago e experimento não te recordar. Piso um livro no chão e lembro-me de um instante em que adormeci. Não me lembro se depois ou acordei ou nem sequer cheguei a adormecer. Apenas me lembro de ti.
E de repente, tocas-me na face, dizes que tive um sono conturbado. Reconstróis os passos no jardim - e eu na cama, sabendo que és tu.
Mas logo depois, com o universo a dar cambalhotas, abruptamente me levanto, com os mesmos ideais de sempre, as mesmas perspectivas, o mesmo ser com as mesmas sensações e as mesmas teorias. Apenas com um pressentimento estranho dentro de mim, até dar comigo, frente a frente, num sonho qualquer, sabendo que durmo e o mundo lá fora está sossegado.
Sabendo que te esvais nas partículas de todo o universo se eu não conseguir acordar agora.