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24 janeiro, 2010

A Brincadeira

Enroscava os fios de esparguete nos cinco firmes e afiados tentáculos do garfo que na sua mão branca possuía, e por vezes, desfazia o frango para o mastigar enquanto Paul, a olhava entre a luminosidade das velas e a percorria com a sua enorme aptidão para contemplar; ornamentando toda a linha do seu olhar palavras pueris e os seus gestos fastidiosos. Era bom homem, mas M. não se sentia minimamente atraída por aqueles regalos. Sentia-se francamente apenas a sua amante e o seu consolo. Aproveitava, isso sim, o sabor condimentado do jantar, o vinho tinto, e a luz das velas que, por mais que estivessem inquietas e aumentando e diminuindo o seu núcleo quente, a deixavam serena no seu manjar irrepreensível.
Depois de uma grande trago de vinho, M. olhou para a janela e avistou as costuras da lua pendurada e o relevo das árvores sombrias e das casas inundadas de noite e de angústia. Ainda trazia o toque de Paul no seu corpo, a gravidade do seu superficial e espesso ser no chão, os gemidos e os movimentos furtivos tomados pela saliva e a ansiedade; sim, o amparo e o chamejar de todas as coisas inflamadas, exíguas e absolutas em cada pequeníssimo segundo. As pernas ainda estremeciam.
Depois disse: «Paul, preciso de voltar,adeus».
Ao abrir a porta de casa, M. com a sua candura e ainda transpirada por todo aquele fôlego e sapateado emocional, surgiu-lhe na mente a sua banheira repleta de espuma, e sentiu-se bem-aventurada. Depois pensou nos seus planos e estratégias e o modo como estavam assertivos e pouco pungentes. Sentiu a chave rolar duas vezes e acendeu a luz enquanto descalçava os sapatos. Ao lançar o olhar para o fundo do corredor, quase como uma vertigem, ali estava, extático, repousado e sólido e com toda a sua frivolidade, Simon.
«Penso que sabes o que faço aqui».
«Mas…», vacilou M., «o documento não era para ser entregue apenas na próxima semana?»
«Não te faças de parva, quero o documento agora!»
M. sabia que tinha de entregar o documento prometido a este estranho homem. Mas com o silêncio prolongado de Simon, viu-se com mais tempo para jogar o seu jogo, com as suas tácticas e as suas ordens, embora admitisse estar a navegar na vida luxuosa que lhe era oferecida, mesmo ganhando terreno perante Paul e perante o castigo a que ela mesma se condenou.
«É aqui que tu vives, nesta mansão. Tens as condições necessárias para seres uma mulher abastada de dinheiro e até para te tornares importante e útil na sociedade. Que queres mais? Tens todo este império adiantado, mas o prazo da entrega do documento acabou. Quero o documento agora. Já!»
Foi nesse mesmo instante que M. sentiu necessidade de se afastar de todo aquele escárnio. Queria desistir, ir viver para a rua e livrar-se daquela procriação de mentiras e absurdos. Afinal nem ela percebia para que servia aquele documento. No entanto, já era tarde, muito tarde, e desatou numa convulsão de lágrimas diante o rosto desfigurado de Simon.
«Só preciso de mais 48 horas, por favor.»
Sentaram-se os dois à mesa como dois demónios. As lágrimas ainda escorriam pelo rosto de M., no entanto o seu choro tivera enfraquecido. Apenas um tilintar quase inaudível preenchia a sala, pingando no silêncio que se tinha posto, comprimido e frio, petrificando aos poucos M., diante a expressão férrea de Simon.
O coração que estava ausente começara a sentir-se, acelerado, bombeando o sangue de M. com força, magoava-lhe quase, fugia-lhe mesmo, e M. começou a argumentar com uma certa infantilidade o caso. Falava rápido e desconcentrada, devido aos nervos, ao mesmo tempo que Simon arrastava a cadeira e andava de um lado para o outro. A sua voz tornava-se agora irritante, perturbando-a a si mesma, preenchendo todos os buracos do silêncio pormenorizadamente.
Quando acordou daquele solto carrossel de frases atropeladas e inúteis, já tinha levado uma bofetada no rosto frio e desligado. Ficou sem qualquer tipo de reacção. Apenas inexpressiva e zonza.
Passados momentos o telemóvel toca.
«Paul, diz… eu estou bem... não estou nervosa, dói-me a cabeça. A tua mulher? Está a dormir, pois. Não vais dormir? Claro que tenho ciúmes, mas eu sei que precisas de dormir…».
Quando Paul lhe conta que está aglutinado ao jogo de Simon, M. fica em primeiro lugar, confusa; em segundo lugar surpresa e desiludida, depois enfarpelada de tantos sentimentos desiguais e humilhantes, vê-se suja e irremediavelmente só, com o seu âmago desolado, a cólera que se lhe vai trepando pela consciência entupida, o seu corpo derrotado, ali, olhando para onde mora o sorriso vazio de Simon.
A realidade estava difusa e sem analogias. Apenas o bloco de pedra quase sem sentidos que se tivera tornado, de súbito.
Nesse mesmo instante, Simon apontou o revólver à cabeça imóvel de M., e com precisão e alguma carnalidade, disparou. O corpo de M. tombou e estremeceu uma última vez no chão.

23 janeiro, 2010

A Saliva

Eu sei que finges que sou um teatro quando no teu tacto eu sou consolo e preguiça ao amanhecer. Mas certamente, ainda com mais coragem, a tua prosperidade; de modo a que avances para o fundo da cama vestindo as cuecas, amarrotada ainda pelo esoterismo dedicado às sombras ondulantes no tecto durante a noite.
Com os teus escrúpulos e as tuas manias, pisamos as ruas, cúmplices do comportamento do riso do coração. Esperamos que desta vez o nosso raciocínio esteja certo, e uma transfusão de afectos, por fim, possa ser parte do nosso estado psíquico.
Chove e eu não compreendo nada do fracasso destes homens: confusos com a sua própria satisfação. Tomas dois sedativos e um martini e sussurras-me a tua confidência. «És um antídoto das minhas mágoas», e no compasso e no torpor da tua estratégia, abraças-me dizendo que me amas sem fim.
Por espontaneidade ou por impulso, despedaço a tua saliva por entre os dedos, e contemplo-a isolada e suspensa na atmosfera. Sinto os meus sapatos, foco o olhar, a água escorrendo dos meus dedos, tu abraçada a mim como uma louca, até levantarmos a cabeça e girando à nossa volta, de novo, a realidade e as ruas.
O amor tem as suas arquitecturas e as suas manhas. Dizes que é mais fácil rodopiar pelo mundo, do que acordar sem ninguém. A fraqueza é um mal para sermos fortes. E assim, segregas todas as minhas emoções com discórdia e sensibilidade, mesmo assumindo o meu disfarce.
No entanto, o paradoxo da solidão e do amor provoca-te náuseas. Só quando chegas a casa é que sossegas, é sempre assim.
O quarto sonâmbulo e as tuas vitórias espalhadas pelo chão, dão-te forças para lavares a cara. Sinto de novo a tua saliva nos meus dedos, mas desta vez não olho, não quero olhar, e tu sorris, ainda com o rosto molhado e os olhos preenchidos de remorsos e esquizofrenia.
Nesse mesmo instante, viras o teu corpo. Sentes um chicote na alma, pedes desculpa entre dentes e arrastas-te até à cama, tombando o teu sorriso frágil.
Foi assim que a tua lucidez morreu.

Lisa

Ela cresceu entre as paredes daquela casa sem grande culpa de ter nascido sem mãe e sem pai. Apenas a avó a adormecia nas noites de Inverno, nas noites inquietas quando as sombras se ampliam pelo quarto e os ruídos se transformam em passos e sonhos.
Aos poucos, pela incerteza de tudo existir e depois da metamorfose do corpo lhe ter surpreendido com tanta exaltação, a sua vida tornava-se num estranho destino a que se habituara a viver. Era curioso como Lisa tinha crescido e se tinham delineado formas no seu retrato; como os seus sentimentos eram outros perante a vida e a sua misteriosa sina. Por outro lado, a avó que tivera sido mãe e pai, era uma mulher solitária que ficava envelhecendo à janela, a observar quem passava na rua, cada vez mais frágil e demente, cada vez mais sozinha e inútil, filha da uma neta que um dia criou na sua estrada de tristes canções e fins imprevisíveis.
Assim, a vida de Lisa se foi tornando num cárcere entre as paredes daquela casa de onde não podia fugir. Mas era a avó que protegeria no fim da solidão e de dias amargos sem paixões e sem grandes desejos. Apenas sorria aos vizinhos, com a avó doente na janela a perscrutar tudo, ela desamparada a caminho de um emprego invisível, sem grandes perguntas nem respostas, apenas o seu olhar azul numa luminosidade tímida, apenas o regresso a casa, o bater do portão e a avó, a febril avó entre as paredes silenciosas daquela casa cheirando a velas e a remédios.
Mas um dia quando chegou a casa, depois dos seus afazeres, encontrou a sua avó morta. No entanto, era como se as duas já o esperassem. Na noite anterior já as janelas estavam fechadas. A avó de Lisa pediu que ela se sentasse com ela. Desligaram a televisão e a avó começou a relatar a sua vida e a crónica de Lisa antes de a avó a ter abraçado. Contou-lhe que a sua mãe tivera fugido com um advogado para a América quando Íris ainda tinha dois anos, e o pai, «o teu pai filho destas rugas que podes tocar», morreu de saudade, como acontece aos cães.
Por isso, foi claro de entender de que se tratava de uma despedida. Uma despedida que incluía a avó mas também a casa e o seu passado. Porque depois de todos terem desaparecido e morrido perante a sorte e azar de um destino, Lisa fechou o portão para se livrar do cheiro a velas e a remédios, dos sentimentos amarrados aos velhos retratos, mas sobretudo, para se livrar dos fantasmas e das canções tristes que se foram entranhando nas paredes, como musgo.
Foi nesse mesmo instante que Lisa, pela primeira vez, sentiu com prazer a estranha sina da sua vida.

No meu jardim

Ouço o som dos teus passos no meu jardim. É a tua insónia que fala, reproduzindo a tua forma de habitar o meu pensamento.
Mas de qualquer modo, eu também não estaria aqui a cismar porque é que estas coisas acontecem, se tu não viesses, de mansinho, murmurar ao meu ouvido a locomotiva que te tomba do lado de lá onde eu nem sequer gesticulo um pronuncio deste mundo, girando agora, debaixo dos teus pés descalços. Assim é, e assim também nós inventamos brisas que deslizam sobre a superfície do que é matemático. Um estalar de folhas secas, os teus lábios feitos de pólvora, e ainda os restos, os restos dos ruídos das máquinas gerando dentro de ti, o vento que entra pelo friso das janelas do meu quarto, até à locomotiva se dissipar.
Dizes que é mais fácil não haver noite, como se de manhã eu já tivesse esquecido tudo. Vens e trazes na mão bocados de cinza que não são nem da tua esperança nem da tua luta. Apenas cinza. Cinzenta, fina e frágil. Podias dizer que eram lágrimas que eu acreditaria, mas não – simplesmente dizes que é cinza - e lanças tudo ao ar, transformando o meu jardim nos sonhos que deixei morrer.
Quando adormecer sobre a confusão do teu corpo, sei que devagarinho me irás perseguir, escondendo-te debaixo dos meus medos, dos meus risos, trepando pelos meus sonhos, e riscando um outro caminho à minha frente, que não o meu, propositadamente para que eu não me abandone.
Assim, vagarosamente, abro os olhos. Há bocados de imagens sucessivas da tua recordação contra a parede. Ligo a luz e dói-me a cabeça. Já é de manha e pouco dormi. És um fantasma que escavou o meu cérebro até aparecerem ruelas que nunca tive e te levam até onde eu estou.
Mas sabes, às vezes não acredito em nada do que tu fazes e falas, parece que não dormes - como eu- que inventas a tua existência para eu ficar a olhar-te, eléctrico, a ouvir a tua locomotiva, que aparece e desaparece com o som dos teus passos pelo meu oblíquo jardim.
Por isso, agito o copo com água e refaço o meu ser corpóreo. Vou até à varanda para ver se ainda te alcanço. Engulo todos os teus sintomas num só trago e experimento não te recordar. Piso um livro no chão e lembro-me de um instante em que adormeci. Não me lembro se depois ou acordei ou nem sequer cheguei a adormecer. Apenas me lembro de ti.
E de repente, tocas-me na face, dizes que tive um sono conturbado. Reconstróis os passos no jardim - e eu na cama, sabendo que és tu.
Mas logo depois, com o universo a dar cambalhotas, abruptamente me levanto, com os mesmos ideais de sempre, as mesmas perspectivas, o mesmo ser com as mesmas sensações e as mesmas teorias. Apenas com um pressentimento estranho dentro de mim, até dar comigo, frente a frente, num sonho qualquer, sabendo que durmo e o mundo lá fora está sossegado.
Sabendo que te esvais nas partículas de todo o universo se eu não conseguir acordar agora.