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16 maio, 2011

Pedra





Acordar sobre as pedras, digamos
estar vivo entre as espirais da lucidez,
embora com lágrimas, suspiros,
e algumas moedas na toda contorção
do corpo; estar vivo e lúcido,
como se essas moedas fossem ventre
quente, roda, buraco ou poema:
não será pedir de mais na hora
do som? E vivo, vivo para quem
se pelas cinco da tarde
no dia cinzento sobre o muro caiado,
a leitura responde
e o combate de quem sente o meu exército
no sangue, apenas terá o meu nome, o eixo
que tracei separando o que esqueci
entre o fogo, labareda de estrelas
no meu fundo,
e a palavra que restou
da constelação cerebral.

Eu estarei morto, animando com metáforas
e tambores a fragilizada povoação de insectos.
Eu nunca existo, mas deixo que me tomem a voz
e penetrem na noite
na noite dos meus devaneios, multiplicando-se
em luz, em vestígios, em segredo.

Acordar sobre as pedras, digamos escrever,
e afinal ter um corpo frio
tombado junto às ervas
e não ser corpo – um cego ouvindo os estrondos da guerra
sem fugir. Antecipemos: estar propositadamente
entre um livro para que me amem
em caso de frio ou vultos
embrulhados
sem cura dentro daquele lugar
onde dói, de facto, pronunciar palavras.
Por isso lemos - avançam-me.

Acordar sobre as pedras,
digamos, ser nuvem que se levanta do chão
e se despedaça, em tempos de fome,
numa súplica,
recolher as crianças para casa
porque vai chover
e chove,
ou biologicamente falando: a vida
que acaba repetida
mas sempre alterada, em som,
em forma, em lua talhada de inocência.

Sempre assim
até que de repente, quando já mais nada
parece fazer sentido,
acordar sobre as pedras, digamos,
ser uma pedra entre as pedras, muitas:
a pedra que a infância apertou nas mãos
e, intensamente, com ela pedra pedregulho
universo, ou unidade de alma concentrada,
a criança viu a chuva com os olhos em ciclo
de musas, cristais, surpreendida
na janela com um sonho qualquer
que agora escrevo - agora que o perdi,
digamos: solidão, relâmpagos, fraqueza
(e uma pedra a rolar,
a desfazer-se entre os meus dedos).

08 maio, 2011

O meu quarto




Hoje regressei ao meu quarto. Ainda trago páginas despenteadas com rascunhos rasurados e excertos de prosas inacabadas que não tive coragem para finalizar. Existe um certo travo a mofo que se foi impregnando pelas paredes com a humidade e as horas moídas de abandono e de segregação. (Não, não sou eu. Nem de longe nem de perto - não sou eu). Ou pelo menos não queria que assim fosse: um fóssil cheio de saudade e de silêncio.

Por isso, decidi voltar ao quarto, ao quarto desabitado; não para me deter numa cama de insónias e de monstros nem para enclausurar o corpo nestas paredes feitas com as sinuosidades do pensamento e com o revestimento do meu olhar dissolvido na solidez de tudo - porque também não me escapa a tinta amarelecida do tempo sobre a desarrumação das coisas, sobre a brancura do meu desassossego e da minha inocência.

Sim eu voltei, mas para tapar as fendas do chão que a esta hora permanece estendido, sempre frio e ruidoso na sua condição de soalho que foi esmagado com armários e objectos corroídos pela recusa e pela mudez, ou simplesmente pela inevitável vida compondo as suas harmonias e os seus buracos à superfície do que é concreto. Se sou sonhos e me despeço deixando essa vaga absurda sensação de vazio, essa sensação desamparando os objectos do meu quarto à mercê do silêncio e das partículas que deambulam pelo ar – então nesse caso - aqui não vive ninguém. E eu não posso deixar o meu quarto estalar, encolhido perante os clarões da lua, ouvindo vozes lá fora que nada significam mais que a perturbadora falha de palavras aqui dentro.

Por isso hoje regressei ao meu quarto. Irei abrir as janelas para engolir o vento. Irei escrever poalha de luz, brisa do meu ventre, de modo poético e filosófico (como eu prefiro), para que volte a encontrar quem sou neste argumento inventado. E sem qualquer receio, irei deixar a translação do mundo no seu circuito, sem alterar uma pequeníssima luminosidade de espanto ao seu redor: senão algumas faúlhas de sonhos que queimaram em silêncio, por detrás do meu nome, entre as primaveras e as mariposas que deixei fugir.

Talvez a vida nunca nos decepcione, mesmo quando depois de tudo já estar vencido ainda sobrevivam carícias sobre a nossa face inóspita, e nos sobressaltem com os seus rasgões de desejo as imperatrizes donas da lua, o amor ou as máculas, medusas, o quer que seja – o que a vida nos diz com o tempo, é que existe algo, algo que nos insinua, algo que nos transborda, algo que nos fornece coragem, simetria ou fluidos, fantasias anónimas despojadas no torpor da escrita, na nossa rotação expressionista, na nossa raiz vital que se ascende na pulsação do tempo e nos nossos sentimentalismos imediatos torneando, fecundando, este ventre incansável.

Não é apenas loucura ou máscaras ou beleza - é um modo que eu encontrei de visitar-me vivo, um modo de estar despido, longe das farsas, das faíscas e das condições climatéricas dos semblantes. Um modo de eu olhar o meu rosto ao espelho até que me surpreenda com o que disse, enquanto me vejo, e a minha alma estilhaça como se fosse uma substância real na inocuidade do mundo.

E, enquanto houver estuque e soalho, eu vou continuar a escrever. Com os olhos convulsos de saliva, desconstruindo dogmas e gritos, obcecado pela surdez irreal do amor e preenchendo de palavras lilases e eloquentes a profusão de todas as coisas; eu vou continuar a escrever sempre, com as mãos abertas à luz do encantamento, com todas as palavras incompletas delineando o silêncio, a escuridão tacteada do meu quarto.