A menina dos devaneios com sabor a canela gostava de se pentear antes de cair na cama. Fingia que a insustentável relação dos sonhos com a vida era uma circunstância da qual só os poetas podiam usufruir, mas era mentira. Caída na cama, ainda trazia as mãos riscadas de amor e, com alguma intensidade, fechava-as na esperança que o número sete lhe trouxesse sorte, ao mesmo tempo que sussurrava poemas de Shakespeare.
Tinha mudado de quarto e ainda lhe custou um pouco a adormecer. Ás vezes, durante o dia, conversava com um amigo imaginário que lhe falava sobre as estrelas no alto, girando e gravitando, como se quisessem ser apanhadas. Isto fazia-a rir. Agora também se ria, lembrando-se destes instantes e mordendo a almofada para não acordar ninguém.
Quando o despertador tocou, já era tarde. Tinha um exame da faculdade para fazer e ainda sentia as pestanas pesadas, o corpo extasiado de sonhos. Se pudesse, estaria defronte para o oceano sem pensar em mais nada. Mas nessa mesma ocasião, levantou-se de sobressalto e só deu por si quando já estava a almoçar num restaurante italiano, com um ruído de uma orquestra que combinava com as luminosidades entrando pela janela, flutuantes e melodiosas.
Voltou para casa dentro de um autocarro empanturrado de gente. Já nem se lembrava que tinha feito o exame nem o dia em que estava. Sentia-se um pouco abafada devido ao barulho e ao obtuso preenchimento do autocarro anulando o oxigénio. A menina dos devaneios com sabor a canela não era menina de grandes angústias, pelo contrário: era mágica, enfeitiçava tudo com o desenho do seu sorriso, aquele sorriso onde as palavras brilham, onde os seus lábios estremecem a paisagem e vão levantando devagarinho algumas partículas de contentamento das gastas cores do solo, arrastando com o seu corpo solto os melhores dias do mundo.
Mas naquele momento sentia-se estranha. Não lhe apetecia voltar para casa. Queria rir-se. «Onde andará o meu amigo imaginário?», pensou.
Saiu algumas paragens antes de casa e decidiu ir ao cinema. Isolou-se a deslumbrar uma comédia romântica que a deixou a pensar sobre o amor, mas sobretudo sobre as relações com falta de diálogo e as consecutivas traições. E, como no final, tudo se organizou, mesmo quando tudo parecia dar errado, reflectia. Reflectia a caminho de casa, concentrada, sem se lembrar que caminhava a pé, atravessando o bosque florido, mas cinzento anunciando a chuva e a noite que se estendia sobre as árvores.
Quando olhou para a sua frente avistou, vertical e corpóreo, o seu amigo imaginário. Como podia ser real? Esperou que ele falasse, na dúvida. Ele não disse nada, apenas a olhava, profundamente e fazendo soltar a sua essência habitual, mas desta vez, num espaço concreto, num espaço real, com uma cor profusa e intermitente. Era ele sim, não restavam dúvidas. De súbito, numa voz ligeiramente grave, ouviu: «menina dos devaneios com sabor a canela», e sem se conter, sorriu.
Depressa seguiu o amigo imaginário. Ele mostrou-lhe onde vivia: uma casa com formas de árvore. Era, de facto, absolutamente incrível, para a menina dos devaneios com sabor a canela, a arquitectura daquele lugar.
Sentou-se no mesmo lugar onde ele costumava conversar com ela, e sentiu dentro de si um repouso interior fora do vulgar; sentia-se sonhar, ao contrário de quando falavam por aqueles métodos inexplicáveis. Pela primeira vez, levou a sua mão ao rosto do amigo imaginário; pela primeira vez sentiu o toque, o mistério da ordem física, a fusão da carne descendo todas as vias lácteas até àquele lugar. Sentia na sua mão, o sangue do amigo imaginário a correr rápido, mas inteiro e puro. Pairava um silêncio, o olhar dele sobre o seu. Não sabia o que dizer, nem o que pensar. Levou a sua boca até aos lábios dele e beijou-o dissolvendo todos os seus sonhos e toda a sua febre. Pensou, de repente, que estava num conto de fadas e que ele poderia desaparecer - mas não. Depois olhou bem fundo dos olhos do amigo imaginário, como se lhe procurasse a alma. Sentiu o sabor da canela na língua e saiu.
A caminho de casa, já quase a noite se tivera debruçado sobre o bosque, movia-se em passos velozes fazendo estalar as folhas caídas. Algumas gotas de chuva caíram entrelaçando-se no seu cabelo e o mundo parecia-lhe estranhamente largo e absoluto. E assim, enquanto cantarolava, «One love, one life, it´s one need in the night. One love, we get to share it. Leaves you, darling, if you don´t care for it...», anoiteceu.
Antes de ir dormir, a menina dos devaneios com sabor a canela, penteou-se como era frequente e foi à janela. Podia ver as estrelas no alto, girando e gravitando. Mas desta vez não a faziam dar gargalhadas; deixavam-na antes com uma sensação de prazer, uma sensação de magia que deslizava através do seu corpo, uma luz branca que se desfazia nos feitiços do seu sorriso…
Tinha mudado de quarto e ainda lhe custou um pouco a adormecer. Ás vezes, durante o dia, conversava com um amigo imaginário que lhe falava sobre as estrelas no alto, girando e gravitando, como se quisessem ser apanhadas. Isto fazia-a rir. Agora também se ria, lembrando-se destes instantes e mordendo a almofada para não acordar ninguém.
Quando o despertador tocou, já era tarde. Tinha um exame da faculdade para fazer e ainda sentia as pestanas pesadas, o corpo extasiado de sonhos. Se pudesse, estaria defronte para o oceano sem pensar em mais nada. Mas nessa mesma ocasião, levantou-se de sobressalto e só deu por si quando já estava a almoçar num restaurante italiano, com um ruído de uma orquestra que combinava com as luminosidades entrando pela janela, flutuantes e melodiosas.
Voltou para casa dentro de um autocarro empanturrado de gente. Já nem se lembrava que tinha feito o exame nem o dia em que estava. Sentia-se um pouco abafada devido ao barulho e ao obtuso preenchimento do autocarro anulando o oxigénio. A menina dos devaneios com sabor a canela não era menina de grandes angústias, pelo contrário: era mágica, enfeitiçava tudo com o desenho do seu sorriso, aquele sorriso onde as palavras brilham, onde os seus lábios estremecem a paisagem e vão levantando devagarinho algumas partículas de contentamento das gastas cores do solo, arrastando com o seu corpo solto os melhores dias do mundo.
Mas naquele momento sentia-se estranha. Não lhe apetecia voltar para casa. Queria rir-se. «Onde andará o meu amigo imaginário?», pensou.
Saiu algumas paragens antes de casa e decidiu ir ao cinema. Isolou-se a deslumbrar uma comédia romântica que a deixou a pensar sobre o amor, mas sobretudo sobre as relações com falta de diálogo e as consecutivas traições. E, como no final, tudo se organizou, mesmo quando tudo parecia dar errado, reflectia. Reflectia a caminho de casa, concentrada, sem se lembrar que caminhava a pé, atravessando o bosque florido, mas cinzento anunciando a chuva e a noite que se estendia sobre as árvores.
Quando olhou para a sua frente avistou, vertical e corpóreo, o seu amigo imaginário. Como podia ser real? Esperou que ele falasse, na dúvida. Ele não disse nada, apenas a olhava, profundamente e fazendo soltar a sua essência habitual, mas desta vez, num espaço concreto, num espaço real, com uma cor profusa e intermitente. Era ele sim, não restavam dúvidas. De súbito, numa voz ligeiramente grave, ouviu: «menina dos devaneios com sabor a canela», e sem se conter, sorriu.
Depressa seguiu o amigo imaginário. Ele mostrou-lhe onde vivia: uma casa com formas de árvore. Era, de facto, absolutamente incrível, para a menina dos devaneios com sabor a canela, a arquitectura daquele lugar.
Sentou-se no mesmo lugar onde ele costumava conversar com ela, e sentiu dentro de si um repouso interior fora do vulgar; sentia-se sonhar, ao contrário de quando falavam por aqueles métodos inexplicáveis. Pela primeira vez, levou a sua mão ao rosto do amigo imaginário; pela primeira vez sentiu o toque, o mistério da ordem física, a fusão da carne descendo todas as vias lácteas até àquele lugar. Sentia na sua mão, o sangue do amigo imaginário a correr rápido, mas inteiro e puro. Pairava um silêncio, o olhar dele sobre o seu. Não sabia o que dizer, nem o que pensar. Levou a sua boca até aos lábios dele e beijou-o dissolvendo todos os seus sonhos e toda a sua febre. Pensou, de repente, que estava num conto de fadas e que ele poderia desaparecer - mas não. Depois olhou bem fundo dos olhos do amigo imaginário, como se lhe procurasse a alma. Sentiu o sabor da canela na língua e saiu.
A caminho de casa, já quase a noite se tivera debruçado sobre o bosque, movia-se em passos velozes fazendo estalar as folhas caídas. Algumas gotas de chuva caíram entrelaçando-se no seu cabelo e o mundo parecia-lhe estranhamente largo e absoluto. E assim, enquanto cantarolava, «One love, one life, it´s one need in the night. One love, we get to share it. Leaves you, darling, if you don´t care for it...», anoiteceu.
Antes de ir dormir, a menina dos devaneios com sabor a canela, penteou-se como era frequente e foi à janela. Podia ver as estrelas no alto, girando e gravitando. Mas desta vez não a faziam dar gargalhadas; deixavam-na antes com uma sensação de prazer, uma sensação de magia que deslizava através do seu corpo, uma luz branca que se desfazia nos feitiços do seu sorriso…
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